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Saneamento Básico: teoria e realidade da titularidade dos serviços

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    Admin Canal PPP
  • 15 de mai. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 11 de jun. de 2019


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por: Ricardo Tomaz Tannure e

Bruno Gazzaneo Belsito


Transcorridos mais de dez anos desde o advento da Lei no 11.445/2007, marco legal do saneamento básico, esse setor vem, recentemente, sendo objeto de intensa mobilização. O principal fator de debate é a proposta reforma do marco normativo.


Nesse sentido, em 06/07/2018, se deu a publicação da MP no 844/2018, que foi fruto de interação de diversas entidades públicas e privadas. Apesar de a MP 844 não ter sido votada no seu período de vigência, seu conteúdo foi reavivado, com alterações marginais, com a MP 868, de 27/12/2018. Em 25/04/2019 foi publicado o relatório da Comissão Mista da Câmara, com alterações significativas ao texto da MP 868. A intenção foi clara: busca-se a expansão dos serviços pela atração de investimentos privados, reduzindo a atuação de companhias estaduais de saneamento.


A atualização legislativa tem como contexto o fato de que a cobertura e a qualidade dos serviços de saneamento no país apresentam deficiências significativas, o que compromete a qualidade de vida e contribui para a degradação ambiental. Segundo informações do SNIS, o Brasil conta com mais de 35 milhões de habitantes sem abastecimento de água e mais de 100 milhões sem esgotamento sanitário.


Diversas disposições da MP 868 tratam sobre a questão da titularidade dos serviços. Historicamente, esse tema é objeto de conflito no Brasil. Por um lado, o art. 30, V, CF, atribui aos Municípios os serviços de interesse local, sem citar o saneamento. Por outro, o art. 23, IX, CF, descreve ser competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a promoção de programas de saneamento básico.


Apesar da falta de clareza, consagrou-se o entendimento de que a titularidade dos serviços de saneamento cabe aos Municípios, o que não enseja dúvidas em relação aos serviços de interesse local. O problema repousa quando a prestação de serviços ultrapassa os limites de interesse de um único Município. Trata-se do chamado “interesse comum”. Dois instrumentos são utilizados nesses casos.


O primeiro consta do art. 25, § 3o, CF, ao expressar que os Estados “poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”. Não há, todavia, determinação sobre como se dá o exercício da titularidade em relação aos serviços englobados por tais estruturas regionais.


Essa questão foi objeto de análise pelo STF, no âmbito da ADI 1842, proposta em 1998 contra dispositivos da LC 87/89 do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu a região metropolitana do Rio de Janeiro e a microrregião dos Lagos. Somente em 28/02/2013 (15 anos depois) foi concluído o julgamento. Entendeu-se que, uma vez instituída a estrutura regional, o envolvimento dos Municípios é compulsório e a gestão dos serviços deve ser compartilhada, estabelecendo a forma de participação dos Municípios e do Estado, que não precisa ser paritária, mas sem predominância absoluta de um único ente. A demora na decisão da ADI 1842 obstou investimentos no setor, em função da insegurança jurídica gerada pela indefinição da titularidade.


Repise-se que o exercício da competência prevista no art. 25, §3o, CF, deve ser feito por meio de lei complementar. Isso significa que a instituição de estruturas regionais, envolve aspectos político-legislativos complexos, não se tratando de medida exclusivamente técnica (v.g., o Estado do Rio de Janeiro somente adequou sua legislação no final do ano passado, com a LC 184, de 27/12/2018).


O segundo instrumento para situações de interesse comum é previsto no art. 241 CF, que trata da gestão associada de serviços públicos, por meio de convênios de cooperação e consórcios públicos. Os convênios de cooperação constituem a forma mais recorrente para formação de vínculos entre Estados e Municípios no saneamento. Isso se deve ao fato de que os consórcios públicos envolvem maior complexidade em sua formação e operação. Some-se a isso a indefinição quanto à titularidade dos serviços de saneamento em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, em razão da demora no julgamento da ADI 1842.


Feito esse panorama, é possível perceber que o tema da titularidade está diretamente relacionado à organização institucional do setor, que é caracterizada por uma multiplicidade de atores. Além dos Municípios e Estados, é preciso arrolar ainda a União, não apenas pela sua força programática no saneamento (art. 21, XX, CF), mas por ser, historicamente, provedora de recursos para investimentos no setor.


Nesse sentido, a prestação eficiente dos serviços depende da regionalização, com vistas à universalização por meio de ganhos de escala e compartilhamento de alavancas de valor. Existe, portanto, um viés econômico, cujo vetor é a necessidade de integração (técnica e econômica) dos serviços e suas infraestruturas, o qual se contrapõe a um viés jurídico-institucional, calcado na pulverização da titularidade e de atores envolvidos. O problema, portanto, reside justamente no descompasso entre essas duas realidades: a econômica, dotada de um vetor de agregação, e a jurídico- institucional, baseada na premissa da municipalização.


Esse permanente embate de realidades tem sido o principal problema do setor de saneamento, pois a sua complexa organização institucional enseja custos de transação bastante elevados para a implementação de projetos. A constante necessidade de negociações políticas entre Estados e Municípios agrega riscos que, numa lógica de projeto, são alocados de forma mais eficiente aos próprios atores públicos, o que justifica as dificuldades de entrada da iniciativa privada no setor, sobretudo em projetos de maior escala.


Sobre o tema, mostra-se assente ainda uma controvérsia jurídica acerca da prestação de serviços de interesse comum. Após a ADI 1842, vem se consolidando o entendimento em torno da predominância do interesse como critério definidor da competência: se o interesse é local, a competência é municipal; se o interesse é comum, a competência é conjunta entre Municípios e Estado. Todavia, esse critério de predominância enseja dificuldades empíricas.

Cabe indagar quais são os critérios técnicos que determinam o interesse comum. Em muitos casos, parece não decorrer de características territoriais intrínsecas de um determinado Município, mas sim de aspectos práticos relacionados ao modelo de organização historicamente foi praticado. É recorrente a menção ao compartilha- mento de infraestrutura como elemento diferenciador. Porém, não quer dizer que, em certos casos, os serviços não possam voltar a ser prestados isoladamente em determinado Município, o que denota o aspecto situacional do argumento.


Além disso, o critério da predominância de interesse carreia uma situação de vácuo de competência, tendo em vista que o atendimento do interesse comum não ocorre por mecanismos automáticos. Ao contrário, faz-se necessária a constituição de arranjos complexos para a reunião de interesses, por gestão associada ou estruturas regionais. Pela predominância de interesse, não há resposta clara para como se dá a prestação de serviços de interesse comum na falta desses arranjos.


Não se pode admitir uma interpretação que conduza a um vazio de responsabilidades administrativas, tendo em vista que, em matéria de distribuição constitucional de competências, vale a regra de que não existe competência sem titular. O que pode existir sim é dificuldade interpretativa em identificar a titularidade, o que se traduz em riscos jurídicos que dificultam o desenvolvimento do setor.


Desse modo, para abordar a integração dos serviços de saneamento dois fatores devem ser relevados. Primeiro, a consideração de que o Município deve ser parte do processo na condição de titular, ainda que o exercício dessa titularidade deva ser feito de maneira conjunta. Segundo, a integração é necessária por conta de aspectos técnicos e econômicos. Todos os arranjos jurídicos apontados acima buscam contornar justamente o fato de que titularidade dos serviços é municipal.


Diante desse quadro, é preciso ponderar se a titularidade municipal no saneamento reflete uma distribuição eficiente de competências constitucionais. A lógica da opção atual não parece ter sido econômica ou operacional. O problema é o efeito colateral: custos de transação elevados, riscos jurídicos e imobilismo. Em termos práticos, a titularidade constitucional também não se reflete na realidade da organização do setor, em que cerca 70% da população é atendida por companhias estaduais.


Não se busca, com essas considerações, fazer uma defesa da prestação de serviços por atores públicos estaduais, mas chamar atenção para o fato de que as discussões sobre a titularidade têm desfavorecido o desenvolvimento do saneamento básico. A atual disposição de competências representa um elemento de dificuldade para a atração de investimentos privados, privilegiando arranjos jurídicos de menor eficiência que favorecem a prestação por atores públicos, mais vocacionados a lidar com os custos de transação característicos do setor.


Grandes são as expectativas em torno da revisão do marco regulatório do saneamento. A MP 868 avança positivamente no sentido da regionalização dos serviços. Como apontado acima, diversas disposições tratam, direta ou indiretamente, sobre a questão da titularidade, afastando a atuação direta dos Municípios no interesse comum. Seria importante, no entanto, que tal discussão fosse elevada para o campo constitucional, adequando-se as competências dos entes federativos de maneira a avançar definitivamente no desenvolvimento do setor.


 
 
 

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